O bonde

– Are you from Texas? – perguntou o mexicano de bigodes fartos que também estava pendurado no bonde de São Francisco a caminho da vista de Alcatraz.

Expliquei que minha irmã morava no Texas e havia me presenteado com o agasalho da universidade.

Quis saber de onde éramos.

– Ah, Brasil… ele disse, sonhador.

Em seguida me avisou que preparasse a câmara por que veríamos uma imagem deslumbrante na próxima esquina.

– Três, dois, um e já!

Bati a foto! Mas, não vi nada pelo visor… ( E nem depois enquanto editava as fotografias).

Em instantes ele avisou que já ia descer e na parada soltou-se do coletivo feito uma folhazinha de outono.

O bonde! A aventura estava apenas começando. 

A bicicleta

Em um belo dia de sol, lembrou-se da bicicleta. Foi até a garagem, tirou as teias de aranha mais evidentes e trouxe a bichinha para a luz. Limpou, engraxou, calibrou.

Olhava para ela, novinha em folha. As rugas na testa, o que fazer?

Levou para o especialista:

– O guidon está melando, dá pra trocar?

O especialista aconselhou usar luvas.

– Isso acontece mesmo depois de muito uso. Se usar uma luva vai se sentir mais confortável, é uma pena trocar o guidon original. Esta bicicleta é muito boa!

O especialista decidiu passar uma fita sobre a área pegajosa do guidon. 

– Acho que vai dar certo!

Depois de uma semana foi buscar a magrela.

Ficou satisfeito! Estava nova depois da revisão.

Deixou na sombra, na varanda em frente à casa. No fim de semana iria aproveitar.

Depois de um mês, a bicicleta voltou para a garagem e ali ficou, esquecida.

Ela ia hibernar por mais uns meses.

Mas voltaria à luz, oportunamente.

 

Um médico de verdade!

Entrei no consultório apreensiva, não conhecia o médico. Levava comigo a ressonância da coluna, que discretamente coloquei na cadeira ao lado da minha.

O médico era um senhor, simpático, calmo, e muito gentil.

Expliquei as minhas dores; ele me olhando nos olhos, escutava o que eu dizia. Depois teclou algum tempo no computador, levantou-se e me chamou:

– Vamos ver?

Ele me examinou realmente, checou minha coluna e minhas articulações, pediu que eu fizesse alguns movimentos  e perguntou quando doía; conferiu meus reflexos.

Depois voltou a teclar suas conclusões e falou comigo dos diagnósticos.

Perguntei se ele queria ver a ressonância que eu tinha antecipado. Ele quis.

Olhou com cuidado, explicou e respondeu  as minhas dúvidas e sempre me olhando nos olhos, calmo e eficiente concluiu a consulta.

Saí com uma receita, um pedido de novo exame e o tratamento.

Mas acima de tudo saí muito satisfeita por ter encontrado um médico de verdade, desses que realmente se importam.

Era o dia do médico e à noite estive com meus colegas de turma. Ali encontrei muitos outros médicos de verdade.

Que sorte a minha, que privilégio! 

Voar é com os pássaros

Ela olhava pela janela aberta, o céu muito azul e as gaivotas em círculos: preto – branco – preto – branco.

– A nossa espécie deveria poder voar como os pássaros. Como pode a seleção natural nos dar tamanho intelecto e não podermos voar? Quanta liberdade, quanto paz, quantas aventuras! Deveríamos poder voar!

O companheiro empenhado com a gravata e seus nós comentou:

– Você sempre fala em voar! Pense que se tivesse asas não poderia escrever…

E ela divertida pensou, se espreguiçando:

– Imagina! Eu escreveria com o bico!

Vistoria II

Vistoria do carro… Tem todo ano. Mas parece que é pessoal… 

Vou mais cedo para o DETRAN para não perder meu precioso horário. Felizmente não se importam com isso. Entro na fila e aguardo uns quarenta minutos até que os dois carros da frente sejam vistoriados. 

Começa a agonia. Lembra-me a  tabuada do oito. Bem, hoje os mais novos não conhecem essa angústia. Decorar tabuada? Pra quê? Com todas as calculadoras ao alcance da mão?

Sinto que não é o carro que está sendo vistoriado. O moço ordena:

– Acende seu farol, farol de neblina, farol alto.

– Liga seu pisca alerta, agora liga sua lanterna.

Eu pisco e repisco. Vou mexendo nos controles, acendendo e apagando aleatoriamente os botões.

Tenho uma “fragilidade” auditiva e no DETRAN, o  ruído do tráfego intenso ao redor, e hoje, da chuva forte fuzarcam ainda mais meus nervos.

Ele pede que eu acelere e desacelere conforme a máquina  ao meu lado pedir, para descobrir se meu carro está poluindo além da conta. Capricho, mas tomo bomba da primeira vez e tenho que repetir. O problema não é do carro, é meu. 

– Pronto! Estaciona e espere ao lado daquela cabine – o moço educado me orienta.

Daí a pouco recebo os documentos novos e um sorriso de bom dia.

Era isso?  Tá bom, até o ano que vem!

Alquimias na cozinha

Faz tempo… Ainda em São Paulo, muitos anos antes da minha Helena nascer.

Mas me lembro como se tivesse acontecido ontem.

Estávamos, a Maristela e eu, na cozinha. Eu preparava uns ovos cozidos para decorar a maionese, enquanto tagarelava com a amiga, que estava sentada em um dos tamboretes que havia ali. 

Como sempre, estava frio, e as roupas no varal da área de serviço tapavam a pouca  luz natural que poderia entrar pela porta aberta.

Estávamos animadas, discutindo filosofias, muito distraídas.

Depois que a água ferveu, esperei mais dez minutos – para ovos duros, como meu pai me ensinou – apaguei o fogo, joguei a água pelando na pia e abri a torneira para esfriar os ovos e eu poder descascá-los.

Conversa que vai e vem, descasquei o primeiro e o segundo ovos e já descascava o terceiro quando estranhei a consistência e as cores.

-O que é isso? – perguntei abobada.

Maristela respondeu pragmática:

– Um pinto!

Em um átimo joguei longe a gororoba, estressadíssima.

Maristela me fez o favor de catar e jogar no lixo, enquanto eu sofria com horror.

Hoje imagino  que eventualmente algum chef possa desenvolver a iguaria: Poussin en sarcofage.

Naqueles velhos tempos não havia ainda a ANVISA. Ninguém seria responsabilizado pelo susto que tomei. 

E talvez venha daí a minha intolerância aos ovos. 

Bom,  pelo menos não estava dentro de uma garrafa de coca-cola, o que estragaria definitivamente o meu prazer pelo refrigerante!