Aos professores de todos os tempos

Todo mundo conhece. Todos tiveram, pelo menos alguns, durante a vida toda. Naquele irmão que mostrava a graça da formiguinha a carregar a folha para alimentar a colônia, no tom de voz professoral do amigo, explicando a tabuada do quatro, contando os dedos, os olhos bem abertos… nem é preciso lembrar daquele talentoso professor de ciências ou do catedrático da faculdade de direito. Basta lembrar do próprio pai que nos ensinou a pescar e a lidar com a tralha, sem nos machucar.
Ser professor é atávico. Já se nasce curioso, querendo aprender na frente dos outros, para partilhar, em seguida, com quem sabe quantos quiserem. Nem precisa ser ciência pura, o arroz com feijão. Também se ensina com vontade e prazer, quando se é professor por natureza.
Precisa nascer paciente. Porque não é sempre que o aluno quer aprender, pode se distrair, estar interessado no canto do passarinho, ter problemas na família, quem sabe? É preciso repetir e chamar a atenção para os detalhes e para todas as letras e suas implicações na compreensão do texto, seja ele da lei ou de histórias em quadrinhos.
Tudo deve ser ensinado, tudo mesmo, até o que não deve ser dito e quando. E como explicar a uma criança que a nudez é normal e até pode ser arte? Como se posicionar de maneira didática sobre as opiniões diversas e adversas? Talvez o primeiro ensinamento, aquele crucial, seja que somos todos humanos, cada um diferente do outro e com opiniões próprias, e que respeitar o outro começa onde termina a folha do próprio caderno de exercícios.
Ser professor é destino.
Quantos professores tive e desde o primário, que me lembro ainda como se fosse agora, das feições, das posturas, dos olhares febris olhando para longe, para o futuro que viam em nós, seus alunos, e que pretendiam alavancar para a vida com seus ensinamentos. Era tão evidente aquele prazer de ensinar que era uma epifania para mim, que pensava com admiração: Um dia quero ser professora!
Venho de uma família de gerações de professores. Cada um a seu tempo, a seu modo e em seu universo, desde o grupo escolar até a cátedra. E, na família, há muitos mestres sendo mestres por diletantismo, porque sua natureza é essa.
– Filho, diz uma irmã bilíngue, sabe o que significa a expressão “trocando figurinhas” que sua tia utilizou? Ou o avô para a netinha: Rei morto, rei posto! Ou ainda a deliciosa mania da outra irmã de sempre juntar à grafia da palavra em questão, a regra que rege a grafia.
Os professores de verdade são anjos da guarda, têm profissão de fé e deveriam ser muito mais respeitados que os santos! Heresia? Não creio. Os professores, sim, são santos!

Mercúrio

A notícia de que o planeta Mercúrio estará retrógrado em alguns momentos deste ano, lembrou-me das gotas de mercúrio espalhadas pelo berço de minha filha em uma manhã de febre. Lembro-me de que a peguei nos braços e vi as gotas se dividirem e se divertirem pelas dobras do lençol, umas criancinhas tolas e brilhantes, de assustadora vivacidade para a mãe de primeira viagem, que tudo temia. Teria uma gotinha entrado em seu ouvido? Ela me envolveu em seu abraço ainda miúdo e terno. Nenhum mercúrio orbitava a nossa volta naqueles tempos. Tudo era paz.

Pés no chão

Gosto de ter os pés no chão.
Os pés de verdade, porque os pés da cabeça voam longe…
Muitas vezes ia até a venda da esquina descalça, comprar um pirulito.
Quando voltava, minha mãe, da janela da sala, dizia, seca:
– Vai pisar em um escarro…
Era ela dizer e eu como que pisava em asfalto incandescente. Corria pra dentro, lavava os pés, com nojo, calçava uns chinelos e me prometia; nunca mais.
Minha mãe era dura.
Ainda é.

Incontinência

Meu namorado me disse, certa vez, que sofro de incontinência onírica… Verdade…

O que me separa do inconsciente é uma membrana fina e porosa, quase nada mesmo, muito permeável, até mesmo quando estou bem acordada.

Um dia decidi dar um jeito. Peguei um desses compensados pintados de rosa choque de material de construção, que estava jogado por aí, um monte de pregos que enfiei na boca e um martelo bem balanceado. Preguei sobre a membrana em intervalos de um centímetro, caprichosamente, até ver tudo bem firme e desgraçadamente opaco. Tudo bem, ia acabar. A boca vazia, suspirei, ufa!

Ainda hoje, às vezes, algum sonho escapa e eu trato feito cachorro bravo:

– Senta!

– Deita!

– Fica!

E mesmo assim acontece de um mais atrevido fugir ao comando, chegar ao banheiro, roubar papel do lixinho e fazer uma grande bagunça pela casa!

 

Gambá

O moço chegou com a malita e uns canos de cobre, subiu ao telhado e passou umas horas por lá, às voltas com a caixa d’agua; depois desceu; disse: – amanhã volto, faltou um pedaço. Não veio; lá de cima uns ruídos estranhos, portas, batentes, uivos, alguém para trás? Subi, tudo escancarado, as portas todas abertas, a claraboia inclusive, pensei, entraram, uns ratos, baratas, morcegos, meu deus, uns gambás? Arrepiei, fui fechando, espera, fechava tudo ou deixava passagem? Travei, desci. Busquei café e matutava, olhava pra cima. Prendo o gambá até o moço… Subi e fechei a claraboia. Fechei a última porta. O moço que se vire. Com o gambá e o cano que falta.

Cachorrada

Eram três sacolas pesadas, com compras de supermercado e um trambolho de uma caixa com uma lavadora de pressão.

Ao abrir o portão o “dono da casa” veio cheirar tudo, como sempre faz. O aval dele é o mais importante.

Nisso, veio correndo um esportista jovem, em pleno treino e o danado achou uma brecha entre as sacolas e correu pra cima da “caça”. Gritei de longe, – não corra, fica calmo. Ele felizmente parou. Peguei o cachorro pelo enforcador, que torci para apertar-lhe a garganta – já aconteceu de ele dar ré e se safar da corrente- , e vim trazendo pra dentro de casa. Nisso a vizinha da frente deixou sair dois mini poodles – antigos desafetos do meu cachorro. Vieram pra cima dele pulando e latindo; os dois ao mesmo tempo latiam e pulavam nele, que preso pelo enforcador, estava visivelmente danado da vida, pela injustiça social que lhe impunha. Somente quando a dona conseguiu resgatar os dois cachorrinhos e seus latidos desagradáveis, pude puxar meu cachorro para dentro e relaxar um pouco, sentada no chão, tum tum tum tum.

Acham que acabou? À noite eis que aparece um gambázão para atiçar o espírito selvagem do bicho. Foram horas de espreita e latidos de guarda. Quando pegou o gambá e em um movimento quebrou-lhe a coluna, queria continuar a brincadeira, pelejando para  o gambá ressuscitar. Foi uma noite estressante, ele não queria largar a presa. Deixamos que ficasse no canil, preso com sua presa. Hoje pela manhã já estava mais calmo e conseguimos separar uma criatura da outra. ‘Bora banhar o cachorro, imundo e com um cheiro terrível de medo do gambá.

Ele estava saciado e eu um bagaço.